A única companhia pública de telecomunicações do Brasil, a Sercomtel, controlada pela Prefeitura de Londrina, corre o risco de ser entregue ao capital privado. Um projeto de lei do prefeito Marcelo Belinati (PP), autorizando a venda da empresa, foi aprovado a toque de caixa pela Câmara de Vereadores. A mobilização agora é para tentar reverter o processo, inclusive por meio de uma ação judicial.
A reportagem do Brasil de Fato Paraná esteve na cidade, no dia 7 de junho (sexta) – um dia depois da votação, em segundo turno, do projeto que libera a privatização. Além de constatar que a população esteve, em sua maioria, alheia ao que foi proposto pelo Executivo e à tramitação no Legislativo, a reportagem ouviu dos que acompanharam o processo muitas críticas ao desenrolar dele, e principalmente posicionamentos contrários à entrega da companhia, estratégica e que faz parte da história e do desenvolvimento de Londrina.
“É a morte da Sercomtel, que está sendo enterrada como indigente”, indigna-se uma das lideranças políticas da cidade nos últimos 30 anos, Elza Correia, que foi vereadora (1997-2002; 2013-2015), deputada estadual (2003-2006) e coordenadora da Região Metropolitana de Londrina (2007-2010). “É a política do entreguismo no país acontecendo aqui em Londrina também. A Sercomtel sempre foi a galinha dos ovos de ouro, fizeram belas omeletes com esses ovos, e agora matam a galinha.”
Interesses escusos
Único vereador a votar contra privatização nos dois turnos de votação pelo plenário, Tio Douglas (PTB) mostra-se intrigado com a pressa da Câmara – o projeto foi posto em regime de urgência no dia 6 de junho (quinta), para ser votado naquela noite. “A quem interessa essa urgência? Existem grupos e interesse sobre a Sercomtel que não sabemos exatamente quem são.”
O projeto de lei foi enviado pela Prefeitura à Câmara em abril deste ano. A alegação é de que a privatização seria a única saída para que a Sercomtel recebesse aportes financeiros que saneassem suas contas, o que evitaria a caducidade da concessão para operar telefonia fixa e da autorização para operar telefonia móvel e internet banda larga. Processo de caducidade nesse sentido foi aberto pela Anatel em 2017. Hoje, o processo está suspenso – a Anatel deu prazo até julho para que a Sercomtel apresentasse uma proposta de solução, e assim analisá-la.
O vereador Tio Douglas reclama da superficialidade do projeto e do pouco debate com o povo em torno da proposta. “Não foram apresentados valores financeiros. Não tinha documentação referente aos processos de caducidade e cassação aberto pela Anatel, para que pudéssemos discutir. O debate deveria ter sido mais aprofundado.” O petebista classifica como “desprezo à bagagem técnica e profissional” dos quadros da Sercomtel a venda da empresa, dado o risco de demissão de funcionários. E lamenta a oportunidade que Londrina vai perder de ter em suas mãos instrumentos para o desenvolvimento. “A maior ferramenta do mundo hoje é a tecnologia. Londrina vai se desfazer dessa ferramenta que possui”, afirma.
Sem o povo
A ex-parlamentar Elza Correia faz coro às queixas. Aponta que as audiências públicas foram pouco divulgadas, que a maioria da população não está sendo devidamente informada sobre o projeto e sobre o que se passa com a Sercomtel, e que por isso não está se dando conta do que representa a venda da companhia. “As audiências públicas só foram avisadas na internet; se fosse uma gestão realmente democrática, tinha de ter carro de som chamando a população para participar. Não teve transparência, não teve uma auditoria profunda [nas contas da Sercomtel], a história está contada pela metade.”
De fato, a reportagem do Brasil de Fato percorreu vários lugares de Londrina e não encontrou nenhuma faixa, nenhum cartaz, nenhum sinal de manifestação pública sobre o episódio – mesmo a votação na Câmara tendo ocorrido menos de 24 horas antes. Silêncio e apatias inquietantes, como se nada estivesse ocorrendo com um dos maiores patrimônios do povo londrinense.
Na loja da Sercomtel no Centro de Londrina, clientes da companhia contaram desconhecer o que vai ocorrer com a empresa. “Ouvi falar alguma coisa, mas não sei bem, não deu para acompanhar”, declarou Ana Rosa Gomes, acompanhada da filha, de 15 anos. Elas têm um plano de banda larga em casa, e consideram boa a internet oferecida, apesar de oscilações com o mau tempo. Por sua vez, Júlio César Santiago, ao lado da mulher, Ana Jaqueline, disse temer que a privatização torne o serviço mais caro.
Pioneirismo
A origem da Sercomtel remonta a 1964, quando é criado o Departamento de Serviços Telefônicos de Londrina. No ano seguinte, é transformado em autarquia, adotando o nome de Serviço de Comunicações Telefônicas (Sercomtel). Em 1968, inicia as operações de 5,2 mil linhas telefônicas. Nos anos 90, mais evidências do seu pioneirismo: foi a primeira do interior do Brasil e a quarta do país a implantar telefonia celular. Depois, foi a primeira da América Latina a implantar telefonia celular com tecnologia digital.
É essa expertise acumulada que faz com que funcionários da empresa pública sejam contrários à entrega desse patrimônio à iniciativa privada. Dois advogados do quadro da Sercomtel – Carlos Griggio e Danilo Men de Oliveira -, ainda tentam reverter a privatização, apresentando ao prefeito Marcelo Belinati um plano de investimentos passível de ser assumido pela Prefeitura, acionista majoritária (54,5%) e/ou pela Copel, a empresa pública de energia do Estado do Paraná, que tem 45% da Sercomtel.
O município e a Copel poderiam fazer aportes na empresa para investimentos em fibra ótica, os quais representaria ampliação de serviços ofertados aos clientes e aumento no faturamento da empresa, dizem os advogados. “O que falta é vontade política”, considera Oliveira.
Anatel força privatização
Na avaliação de Carlos Griggio, os processos de caducidade e a cassação abertos pela Anatel estão sendo utilizados como pressão para que a Sercomtel seja vendida – sem que a Prefeitura e Câmara se contraponham e coloquem os interesses estratégicos do município à frente. “A Anatel está forçando a barra para privatizar.”
Uma ação popular, ingressada por Danilo Men de Oliveira depois que o projeto de lei foi aprovado em primeiro turno pela Câmara, tentou suspender a tramitação, argumentando inconsistência da proposta. O pedido, no entanto, foi negado pelo juiz Marcus Renato Nogueira Garcia, que alegou não poder interferir no Poder Legislativo. Com a aprovação definitiva, o advogado estuda ingressar com nova ação, assim que o projeto for sancionado pelo prefeito.
Cronologia
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- Agosto de 2017: Anatel inicia processo de caducidade da concessão da Sercomtel para operar linha fixa e da autorização para operar linhas móveis e internet, alegrando que a empresa não teria condições econômicas e financeiras para continuar investindo nas operações
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- Dezembro de 2017: Anatel dá prazo de 90 dias à Sercomtel para defesa no processo de caducidade.
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- Julho de 2018: Sercomtel comemora 50 anos. Prefeito Marcelo Belinati diz que a empresa é viável
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- Outubro de 2018: Anatel dá primeiro passo para caducar concessão da Sercomtel, ao abrir consulta pública para edital de saída da empresa
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- Março de 2019: empresa Dez de Dezembro, sócia minoritária, divulga oferta de aporte à Sercomtel. Anatel suspende processo de caducidade por 120 dias.
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- Abril 2019: divulgado balanço de 2018, quando a Sercomtel registrou lucro de R$ 1,8 milhão. Prefeitura envia à Câmara projeto que autoriza privatização da Sercomtel. Prefeitura envia à Câmara projeto que autoriza privatização da Sercomtel
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- Maio de 2019: no dia 23, projeto é aprovado em plenário por 18 votos a 1.
- Junho de 2019: no dia 6, projeto é aprovado em segundo turno, com emendas, por 14 votos a 5