Por Verônica Couto/Senge-RJ
“O movimento sindical precisa recuperar a capacidade de anunciar a nossa utopia, fazer com que ela se materialize no cotidiano, com uma agenda muito concreta, e que desperte nas pessoas a esperança de lutar e atuar de forma coletiva.” Esse é o propósito do assessor técnico das centrais sindicais Clemente Ganz Lúcio, ex-diretor técnico do Dieese, que apresentou as principais diretrizes, na sua opinião, para um plano de reorganização da representação dos trabalhadores.
Clemente participou do primeiro dia do 12º Congresso Nacional de Sindicatos de Engenheiros (Consenge), que vai até sábado (11), em modo virtual e presencial – no Hotel Mirador, em Copacabana, com o tema “A engenharia, o sindicalismo, a democracia e a soberania nacional”. Para ele, entre essas diretrizes de reestruturação sindical, a mais crucial é a de formação e capacitação. “Se eu fosse indicar só uma diretriz, diria que é formação, preparação e renovação de quadros, com no mínimo dez anos de investimentos continuados, para começar um trabalho mais estrutural para os desafios postos para o futuro.”
É “fundamental” para o movimento sindical, afirma, traduzir as expectativas dos trabalhadores em um projeto de organização que tenha incidência sobre as perspectivas de mudanças em curso e que possam influir para produzir uma sociedade mais igualitária, com direitos, justiça. Ele concorda, no entanto, que os sindicatos sofrem atualmente, nas disputas pelo cenário futuro do país, uma “pane de imaginação”, segundo expressão usada no livro “A nova razão do mundo”, de Pierre Dardot e Christian Laval, e que precisa ser superada.
O contexto das transformações em curso no país, detalhadas na palestra do economista Marcio Pochmann (veja aqui), requer uma organização social de trabalhadores e trabalhadoras, que, segundo Clemente, dê conta não só da globalização, da tecnologia e de outros processos, mas também das privatizações, que afetaram de forma profunda o sistema sindical, dentro do setor elétrico, de telecomunicações, petróleo, portuário, assim como o processo de desindustrialização.
“Por exemplo, a saída da Ford do Brasil, com impacto direto e indireto, no emprego metalúrgico e todos os demais derivados dessa atividade, da ordem de 120 mil postos de trabalho, segundo estimativa do Dieese”, diz. “Essas coisas em curso estão promovendo transformações profundas na estrutura econômica brasileira.” A organização sindical deverá responder a essas mudanças, afirma Clemente, tanto do ponto de vista dos retornos salariais quanto do conjunto de dimensões das relações de trabalho, da proteção sindical, previdenciária etc.
O assessor sindical divide os trabalhadores em três grandes grupos. Um terço seriam aqueles inseridos na economia formal, com proteção social, laboral, previdenciária e sindical consistente, com relações assalariadas, estatutárias, com capacidade de organização, de fazer greves, de produzir intervenção institucional e um processo de resistência – apesar das dificuldades para a mobilização impostas pelo home office, uma alteração política importante.
Na outra extremidade, estariam os trabalhadores ausentes dessa relação formal e protegida, sem nenhuma perspectiva de chegar a ela, em um mundo de informalidade e precarização, sem possibilidade de ter inserção ocupacional mais estável, muito dependente de transferências do Estado, na linha da miséria e da pobreza, com baixa capacidade de dar um salto que produza qualidade de vida.
No meio, um outro terço de trabalhadores, grande parte dele crescentemente incorporada em atividades terceirizadas, que se relacionam com o setor principal, mas cada vez mais precárias, em que o processo de transformações caracteriza uma proteção instável, insegura, com jornadas muito extensas.
“Ou seja, dois terços têm baixíssima proteção sindical e laboral, e, com isso, temos que olhar para o futuro e nos perguntar qual o papel do sindicato, de que maneira é capaz de construir uma identidade coletiva para esses 120 milhões de trabalhadores”, questiona Clemente. Ele ressalta que a estrutura organizativa sindical deve considerar “um projeto de disputa de futuro, uma organização que seja simultaneamente um instrumento de organização, de mobilização, e capaz de estabelecer um padrão de solidariedade.” O centro da reorganização sindical, na avaliação de Clemente, deve ser o enfrentamento à distância que separa os trabalhadores e trabalhadoras das proteções que podem ser asseguradas pela força coletiva.
Além dos investimentos em formação de quadros, o especialista recomenda a busca de maior unidade entre os trabalhadores e as entidades. “Criamos uma estrutura que é capaz de se fragmentar de maneira continuada”, critica. “Infelizmente, temos uma dinâmica política, na vida sindical, de fragmentação, relativamente espúria do ponto de vista do interesse dos trabalhadores, que dificulta e fragiliza a representação. A organização tem que ser uma resposta. Não pode fragmentar, isolar, aumentar a disputa.”
Com direção oposta, o projeto sindical deve “construir identidade, solidariedade, ter esse sentido muito claro de estruturação, que visa agregar, reunir e fazer com sentido da disputa sobre a perspectiva de projeto futuro”. Refazer a organização sindical pode ser um processo tão radical, compara o especialista, quanto sair da obra de um edifício, para começar a fazer uma ponte. “É outra engenharia”, diz.
O exemplo dos bancários
Assinala, nesse aspecto, o caso dos bancos. “O sindicalismo no setor bancário deve continuar se preocupando com a negociação do setor financeiro, um conjunto de 400 mil trabalhadores, para os quais o acordo coletivo nacional continua sendo desenvolvido. Mas a inteligência sindical deve gerar uma organização que expanda a representação para uma base de 1,5 milhão de trabalhadores no setor financeiros”, afirma, citando terceirizados, pejotizados, empregados em correspondentes bancários, etc. “Essa engenharia de transformação, de expansão da base, de 400 mil para 1,5 milhão, é uma verdadeira revolução na organização sindical.”
Para vencer os preconceitos que separam esses trabalhadores na mesma categoria, Clemente defende uma ação sindical com investimento em informação, formulação, visão de futuro e de pertencimento que una a classe e a torne capaz de se articular politicamente.
Nessas transformações, os formuladores não devem restringir as possibilidades, mas imaginar que a forma de organização pode acontecer a partir do local de trabalho, ou onde fizer sentido, por critério territorial, ou nacional, ou internacional ou setorial.
O ex-diretor do Dieese também propõe a revalorização do trabalho de base: “a capacidade de se colocar de forma solidária, e estabelecer, pelo sindicato, vínculos permanentes de filiação e adesão a esse projeto sindical de futuro e do que queremos como sociedade. Logo, o trabalho de filiação é importante e precisa ser recolocado.”
A diretriz da formação de quadros é estratégica, porque envolve a preparação dos protagonistas centrais das novas formulações, nas próximas duas décadas. “Temos que pensar nos quadros que nos próximos 20 anos formarão a classe trabalhadora. Eles formularão a resposta daquilo que deve ser a nossa plataforma, a nossa estratégia, porque estão vivendo nesse mundo real. Se esses trabalhadores do mundo real não forem dominantes do ponto de vista da imaginação sindical, não seremos nós que vamos criar um sindicalismo que vai responder a esse mundo. Seremos quadros valorosos para construir as novas fronteiras do mundo sindical, mas que terão que ser expandidas por trabalhadores que estão presentes nesse mundo em grande mudança.”
Segundo Clemente, pesquisa feita há dois anos pelas Comisiones Obreras, central sindical espanhola, na área de segurança do trabalho e saúde junto à juventude, verificou que, de cada cinco jovens, apenas um estava num emprego protegido. Nas redes sociais, contudo, esses quatro em condição precária de trabalho aparecem como felizes, animados e dispostos, prontos para ingressarem no mercado formal. Numa abordagem mais qualitativa, para investigar como pretendiam, sem qualificação, ter essa perspectiva, a resposta é que a felicidade exposta nas redes é condição e requisito para disputar e emprego protegido. “Quando perguntam como se sentem, estão desanimados, um quarto já pensou em suicídio e grande parte vive à base de antidepressivos. “As Comisiones Obreras não sabem o que fazer. Temos que fazer um grande investimento para criar uma nova perspectiva. Não é possível o sindicalismo colocar um band-aid nisso, precisamos chegar perto desse jovem.”
O conjunto de estratégias organizacionais, informa Clemente, inclui, ainda, articulações internacionais, o acesso a plataformas e aplicativos, uma inteligência coletiva, uma capacidade cognitiva compartilhada, para poder idealizar respostas para os diferentes contextos. Também é importante, afirma, construir a unidade. Por exemplo, como fizeram as centrais, que promoveram um encontro nacional virtual com 5 mil trabalhadores do setor público, incluindo instâncias municipais, estaduais, União, Legislativo, Judiciário e Executivo, numa ação unitária. “É fundamental que os quadros de direção deem clara resposta e sentido a essa unidade. Não eliminar diferenças, mas atuar coletivamente.”