Impeachment em nome de quem? A quem interessa mudar as regras da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e mexer na aposentadoria; criar um Plano de Saúde que retira pacientes da cobertura do SUS; alterar do Minha Casa Minha Vida entre outras ações propostas pelo governo interino?
Os meandros da crise política instalada no Brasil a partir de uma manobra do ex-vice presidente da República foram tornados públicos na fala da presidente afastada Dilma Rousseff, feita a milhares de espectadores do Circo da Democracia, num evento realizado na Praça Santos Andrade, nesta segunda-feira, 8 de agosto, com transmissão ao vivo pela internet.
Confira, a seguir, a íntegra da fala da presidente que foi eleita pela maioria dos votos dos brasileiros.
O País está sendo tomado por um golpe. Nosso País está sendo dilacerado por um golpe que ainda não se completou, mas que temos obrigação de tentar parar, porque se eles tiverem oportunidade os estragos serão muito grandes. Estamos no Circo da Democracia fazendo uma avaliação, uma reflexão, uma visão dos caminhos que teremos que trilhar daqui para frente.
Neste processo é importante saber o que está acontecendo, dar nome às coisas. Dar nome às coisas no Brasil está sendo hoje algo subversivo no sentido de que o nome faz com que as máscaras caiam, as cortinas sejam rasgadas e a realidade surja. Quando ocorreu no Brasil o debate se estava ou não em curso um golpe de Estado, o que vimos desde aquele momento em que começaram a negar, sob as alegações de que não haviam armas, como naquele em que já vivemos em 1964 e que se repetiu em 1968 e que nossas garantias foram rasgadas.
Este golpe é um golpe parlamentar, que consiste no fato de que na Constituição temos a previsão de Impeachment, mas que para se ter Impeachment é necessário se ter crime de responsabilidade. É um golpe, porque não há crime de responsabilidade. Os executores sabem que não há crime de responsabilidade e sabem que é um golpe.
Uma das características de que se trata de um golpe é tentar impedir de dizermos que é um golpe. Se vocês lembrarem da época de resistência à ditadura, vocês vão lembrar que uma das coisas mais claras é que não podíamos dizer que estávamos vivendo uma ditadura. É próprio dos golpes não querer ser identificado como tal, porque a identificação implica em uma avaliação crítica e numa tomada de posição.
Não me surpreende que, nos últimos dias, tenham prendido pessoas que se manifestam dizendo “Fora Temer”. Este golpe tem essa característica. Eles começam a tentar impedir que as pessoas, em público, os identifiquem. Não é possível falar no Maracanã, em Deodoro, é proibido falar em certos lugares.
Por que é proibido? Porque sempre que tentam processos ilegais, que rasgam a Constituição, a decorrência primeira é impedir que você identifique do que se trata e qualifique o que está acontecendo. É importante que nós saibamos quem são os responsáveis por isso.
“Não me surpreende que, nos últimos dias, tenham prendido pessoas que se manifestam dizendo “Fora Temer”. Este golpe tem essa característica. Eles começam a tentar impedir que as pessoas, em público, os identifiquem”Quem são os responsáveis? Em primeiro lugar, a mídia oligopolista. Em segundo lugar, mas não necessariamente nessa ordem, mas com uma certa simultaneidade, uma parte da oposição ao meu governo. A parte, vamos dizer assim, mais programática, que foi sendo substituída pela parte mais fisiológica, mais complexa, mas não por isso menos ávida.
É esta parte da oposição que representa hoje o governo provisório, interino, com a participação da outra. Parte do PMDB, obviamente com o ex-vice-presidente e atual presidente interino, e também o presidente afastado da Câmara Federal, senhor Eduardo Cunha. E toda uma parte do Capital Especulativo e Financeiro. Acredito que outros segmentos podem ter sido atraídos, mas este é o núcleo duro.
Por que isso ocorre? Temos que entender qual é o sentido deste golpe. Este golpe tem um sentido claro. O primeiro sentido, básico, é o de aplicar no País um programa que nunca seria possível de ser aplicado se tivesse passado pelas urnas e pela vontade popular.
Quem de nós apoiaria o fim do modelo de partilha do Pré-Sal? Quem de nós apoiaria uma PEC que congela os gastos com Saúde e Educação por 20 anos? Quem de nós aprovaria uma versão da CLT em que se flexibiliza a própria jornada de trabalho? E não é de graça que propuseram 80 horas. Agora, o que estão propondo é reduzir fundamentalmente as horas extras sem pagá-las na sua integridade, como prevê a CLT. É a terceirização generalizada e selvagem através da “pejotização”. Preveem também que o SUS não cabe no orçamento, então seria necessário fazer alguns ajustes e criar um Plano de Saúde que fosse aquele aplicado ao povo no qual a cobertura de saúde seria reduzida a quase nada.
Adulteram a própria concepção do Minha Casa, Minha Vida e reduzem o sentido do Bolsa Família. É esse programa que pretendem adotar e impor ao País. Impõem ao País uma versão de um programa muito forte no sentido de garantir os interesses daqueles segmentos que não querem, de jeito nenhum, que o pato seja pago nem um pedacinho por eles. O pato tem que ser pago pelos setores mais pobres do País. Trata-se fundamentalmente disso.
“Quem de nós apoiaria o fim do modelo de partilha do Pré-Sal? Quem de nós apoiaria uma PEC que congela os gastos com Saúde e Educação por 20 anos?”Em segundo lugar, mas simultaneamente, trata-se de estancar a sangria. Impedir a investigação, do dizer das gravações que eles foram objetos por si mesmo, ou seja, do dizer do senador Jucá ao ser gravado. Estancar a sangria para que a investigação não chegue a eles.
A terceira questão diz respeito a um outro instrumento que eles usaram para construir o ambiente do golpe. Não só a política do quanto pior melhor, que paralisou o Congresso e elevou num momento de dificuldade os gastos públicos, não deixando que se aprovasse nada. A própria paralisação do Congresso, que no ano de 2016 até a hora do meu afastamento, a Câmara Federal só funcionou com a Comissão do Impeachment e mal, muito mal, com a Comissão de Ética que julgaria o senhor Eduardo Cunha e que até hoje não completou o julgamento.
Acontece que este golpe está em andamento e as consequências serão a perda de várias conquistas. Se a oportunidade que eles viram, de substituir o Colégio Eleitoral de 2014 milhões de brasileiros pelos congressos eleitorais parlamentares, o que não é função do Parlamento passaria a ser. E teríamos, em lugar de uma indicação direta, secreta, por voto popular para ocupar a presidência da República, no caso eu com 54,5 milhões de votos, teríamos uma votação menor num colégio eleitoral menor e, através de eleição direta, eu seria substituída por um presidente interino, provisório e ilegítimo.
É mais do que o golpe. É o golpe seguido de eleição indireta. É disso que se trata hoje. Por que é seguido de eleição indireta? Porque eles mesmos reconhecem, vários deles reconhecem que não há crime, há um julgamento político. Só que julgamento político cabe no parlamentarismo. O parlamento pode tirar o primeiro-ministro, alegando voto de desconfiança ou qualquer outro procedimento político que não seja do gosto do parlamento. Em compensação, o primeiro-ministro pode pedir a dissolução do parlamento e a convocação de eleições gerais.
Este é o peso e o contrapeso do parlamentarismo. No presidencialismo, que é o nosso regime, pode-se pedir o Impeachment mas, para isso, tem que ter crime de responsabilidade. Não basta a desconfiança, não basta querer aplicar um programa que não passou pelas urnas. Caso queira fazer isso é golpe. É golpe e o processo de substituição passa a ser um simulacro de eleição. Passa a ser uma eleição indireta.
“É o golpe seguido de eleição indireta. É disso que se trata hoje. Por que é seguido de eleição indireta? Porque eles mesmos reconhecem, vários deles reconhecem que não há crime, há um julgamento político”
Daí porque é fundamental que nós demos nomes ao bois. E o que nós vemos? Vemos que um País, que é majoritariamente integrado por mulheres, trabalhadores, classe média, negros, jovens, e pessoas honestas, passa a ser substituído por um governo que é integrado por homens, velhos, ricos e que têm problemas graves com a Justiça. Não é essa situação, de maneira alguma, que vai nos permitir superar a crise.
É fundamental que superemos a crise econômica e voltemos a crescer. Temos todas as condições de superar a crise econômica, voltar a gerar emprego e retomar o crescimento. Para isso é fundamental um pacto nacional. Um pacto entre todos os brasileiros e brasileiras, mas um pacto que não queira atribuir todo o ônus da crise para a classe trabalhadora e às classes médias. Não pode ser um golpe que atribui todo o ônus dessa superação a reformas que cujo caráter eles mesmos reconhecem como sendo de reformas impopulares. Mas, afinal de contas, impopular com que legitimidade? Com que direito fazem isso? Com que discussão prévia?
Daí por que não tem como ter hoje um pacto por cima. É necessário que haja uma repactuação por baixo, para que as pessoas possam participar e dizer o que pensam e o que acham. É possível repactuar sobre a direção desse governo provisório, interino e ilegítimo? Não é possível. Ele é na sua natureza, um ‘antiguarda’ democrático por baixo.
Por isso, é fundamental que nós tenhamos essa vitória no Senado, mas é fundamental também que nós saibamos que no dia seguinte nós vamos ter de olhar pra frente. Eu, por exemplo, apoio e defendo o apoio ao plebiscito e coloco duas questões:
A primeira questão é a da eleição direta presidencial, mas também na questão da reforma política.
O País hoje tem uma fragmentação partidária assustadora. Hoje são 25 os partidos no parlamento, que sejam 25 partidos no parlamento e 35 partidos no total. Uma coisa é certa. A continuar esse regime nós vamos ter mais partidos antes que nós pisquemos o olho, porque toda a estrutura de financiamento da campanha, de acesso ao horário eleitoral de televisão e de acesso ao fundo partidário levam à fragmentação partidária e a ‘desprogramatização’ dos partidos. Porque aqui ninguém acredita que 25 partidos são 25 partidos baseados em programas diferentes para o nosso País ou o nosso Estado.
Vá lá. Que tenham 5, 6 ou 7 partidos. 25 não são por questões programáticas. É importante que a gente fale contra um certo moralismo de fachada que diz que a política é suja. Não é a política que é suja. Ter 25 partidos é. A condição de 25 partidos é a mãe e o pai do fisiologismo. Para negociações. É a mãe e o pai de um certo tipo de política nefasta.
“Hoje não há mais espaço para ignorar que a crise política comprometeu o País e que se nós não formos capazes de superar essa crise política vamos atrasar a recuperação econômica do Brasil. Queria dizer que nós, o Brasil, temos todas as condições. Nós não temos esses desequilíbrio absurdo que falam. Não temos bolhas imobiliárias, não temos empresas quebrando porque se endividaram absurdamente”Ao mesmo tempo nós temos que perceber que o Brasil tem sim que fazer uma discussão clara sobre a questão de como fazer esta reforma política. Com que métodos fazer?
Uns propõem Constituinte, outros que seja feita pelo próximo parlamento. De qualquer forma é fundamental que esta repactuação não seja feita por cima. Porque, por cima é o método tradicional usado no Brasil para que as coisas mudem, e até mudam em parte, mas outras ficam sempre como estão.
Hoje não há mais espaço para ignorar que a crise política comprometeu o País e que se nós não formos capazes de superar essa crise política vamos atrasar a recuperação econômica do Brasil. Queria dizer que nós, o Brasil, temos todas as condições. Nós não temos esses desequilíbrio absurdo que falam. Não temos bolhas imobiliárias, não temos empresas quebrando porque se endividaram absurdamente.
Temos uma crise fiscal com queda de arrecadação. Sair dela é possível. Mas para sair dela, o que não é possível é o que um segmento da sociedade fala “todo o resto paga, menos eu”. Essa é a história do pato. Por isso colocaram aquele pato amarelo na rua. Aquele pato amarelo é uma posição diante da crise, que é uma discussão aqui, nos Estados Unidos, na Europa, na China, em qualquer lugar. Diante da crise, quando diminui o crescimento econômico há uma questão que é colocada à mesa. Como é que você distribuiu? Como é a distribuição? Quem paga o quê?
Quem não pode pagar é quem tem menos, é quem menos pode pagar. Então não querem que haja esta proporcionalidade. Querem sempre que quem pague é o conjunto da população brasileira. O chamado 1% ou 0,5% fica fora do pagamento. Sempre no Brasil foi assim. É assim também quando o País cresce. Só que quando está crescendo sempre sobra para todos um pouco. E sempre sobrou mais para os mais ricos no Brasil.
Quero dizer a vocês que tenho certeza que esta luta é uma luta justa. Eu acredito nisso. Acreditando nisso, eu resisto. Resistindo eu luto. E lutando eu me encontro nesta luta com vocês, porque não é o meu mandato que está em questão. O que está em questão nesta hora é a democracia. E não é uma democracia genérica, abstrata, mas o que vai acontecer amanhã, qual é a opinião que vamos dar sobre os projetos.
Outro dia eu disse, qual é a relação de identidade entre democracia e petróleo? Tem toda relação, porque nós vamos ter que discutir nesse País se o petróleo vai ser distribuído entre nós ou se uma parte expressiva dele, a maior parte, sai do Brasil e vai para outra economia. É essa a discussão. Sempre será esta a discussão, que só a democracia permite que a gente faça com todos os brasileiros e brasileiras a cada eleição. E fora da eleição, olhando para os movimentos populares, e sabemos são legítimos. Você pode até como governo não acatar tudo o que eles pedem, mas tem a obrigação de escutá-los; de resolver com eles os principais impasses e olhar a pauta que eles defendem, porque muitas vezes é melhor que a pauta que você concebeu. É fundamental perceber que um País da dimensão e complexidade do Brasil tem que ser capaz de escutar os movimentos populares.
“Quem não pode pagar é quem tem menos, é quem menos pode pagar. Então não querem que haja esta proporcionalidade. Querem sempre que quem pague é o conjunto da população brasileira. O chamado 1% ou 0,5% fica fora do pagamento”Uma vez estava em uma conferência na qual tinha um ribeirinho do Amazonas. Para mim ele fez a melhor síntese de todas. Perguntaram a ele qual o papel de uma conferência na democracia, da participação, da construção de uma política de governo. E ele disse: “ah, uma conferência é para conferir se tudo está nos conformes.” Na sua simplicidade ele foi objetivo, porque se tudo estiver nos conformes, tudo bem, mas se não estiver tem que criticar.
Tenho essa mania de resistir. Encontro a minha força de resistir, em vocês. É uma força que tem que ter uma direção. E essa direção é justamente a certeza de que a democracia nunca é garantida, que nós a construímos a cada dia. E essa construção é fundamental. Temos que ter muito orgulho de que haja aqui em Curitiba um espaço como este. Para vocês podem normal isso. Mas eu me sinto emocionada por ver um espaço com a participação desta qualidade. Quero dizer pra vocês que acredito ainda mais na luta. Eu lutei a vida inteira. Se engana quem acha que a vida não é luta. É luta na nossa vida pessoal, na nossa luta profissional. A vida me colocou no mundo num momento em que eu tive que lutar contra uma ditadura, contra a tortura, depois contra um câncer e agora eu luto pela democracia e contra uma injustiça. Pela democracia e por essa certeza que eu tenho de que temos que estar firme sempre exigindo que o povo brasileiro participe das decisões.
Eu tenho uma certeza. Acho que é muito difícil um povo inteiro se enganar. Ele escolhe bem e quando toma um rumo, toma bem. Mas ele tem que ter a oportunidade de escolher. O que não é possível é tirar dele a chance de escolher. E quero dizer a vocês que o nosso lado é o lado certo da história. Estamos junto daquilo que tem de melhor e mais transformador que é a democracia na sua maior consequência, a discussão aberta dos problemas e das saídas. E tenho certeza de que a saída da crise passa por esse processo de discussão, passa pela derrota desse impeachment no Senado e passa pela convocação do plebiscito.