Como o assassinato da Deusa estimula a violência histórica contra a mulher e a natureza?

O início da adoração de um Deus único, branco e masculino inaugurou o distanciamento do ser humano do culto à figura da Deusa

Arte: Franciele Arnold
Comunicação
08.MAR.2021

O início da adoração de um Deus único, branco e masculino inaugurou o distanciamento do ser humano do culto à figura da Deusa. O fato contribuiu para o afastamento entre as pessoas e o meio ambiente, que passou a ser abusivamente explorado e degradado por não mais ser visto como parte de uma relação interdependente e conectada.

*Claudia Guadagnin é jornalista, pós-graduada em Antropologia Cultural e mestranda em Direitos Humanos e Políticas Públicas.

8 de março é Dia Internacional da Mulher. A data simboliza a necessidade da luta permanente pela progressão na conquista de direitos, combate a violências físicas, morais, emocionais, afetivas e sexuais e sobre aspectos que envolvem o controle histórico dos corpos femininos por culturas e práticas patriarcais e machistas que ainda predominam no mundo.

Pensar o Dia Internacional da Mulher é também ter a chance de refletir sobre momentos históricos suficientemente expressivos que contribuíram para a construção de um cenário ainda bem distante de viabilizar a igualdade de gênero no Brasil e no mundo. É, além disso, um convite para irmos além e traçarmos um paralelo com os igualmente incansáveis esforços de exploração e dominação da natureza.

Para a cultura patriarcal, tanto a mulher quanto a natureza existem para serem dominadas. Recuperar a história da violência contra a mulher e a natureza e reconstruir seus passados de dominações – agora pela ótica feminina e da conexão entre os seres – seria, portanto, essencial para compreendermos com mais clareza aspectos importantes das relações entre homens, mulheres e o mundo natural. Isso é o que busca fazer o ecofeminismo, a vertente do movimento feminista, que conecta a luta pela igualdade de direitos e oportunidades entre homens e mulheres com a proteção e a conservação do meio ambiente. O termo, vale lembrar, apareceu pela primeira vez em 1974, no texto “Le Féminisme ou la Mort” (“O Feminismo ou a Morte”), de Françoise D’Eaubonne, que apresenta a estreita relação entre superpopulação, devastação da natureza e dominação masculina.

Repensar esse cenário contribuiria com a criação e o fortalecimento de novos e melhores padrões societários e de gênero. Poderia, ainda, ser capaz de restaurar a relação saudável e de interdependência que um dia existiu entre ser humano e natureza. A incorporação e a execução de políticas públicas efetivas que busquem alcançar uma realidade de mais igualdade em relação às mulheres e de promoção de um desenvolvimento global sustentável, responsável e mais consciente em nível transgeracional, também seria essencial para o alcance dessa mudança.

Natureza e mulheres sufocadas

Não é de hoje que o mundo experimenta as graves consequências resultantes da intensificação dos efeitos das mudanças climáticas e do desrespeito ao patrimônio público natural. A cada dia, fica mais claro que o tempo para reversão do cenário, que afetará, principalmente, as futuras gerações, é extremamente curto e finito.

Um relógio instalado em Nova Iorque, na Union Square, deixou de marcar as horas e passou a mostrar, em setembro de 2020, o tempo restante para que o mundo ainda possa agir contra a crise climática. Faltam menos de sete anos para o colapso climático acontecer e efeitos ainda mais extremos passarem a ser sentidos pela Terra. Em sentido diametralmente oposto, um recente relatório do WWF Internacional colocou o Brasil entre os campeões de desmatamento e supressão de florestas e outros ecossistemas entre 2000 e 2018. Resultado de uma extensa pesquisa em 29 países, o relatório “Frentes de desmatamento: vetores e respostas em um mundo em um mundo em evolução”, foi divulgado nesta em janeiro deste ano. O estudo se concentra em 24 frentes de desmatamento na América Latina, na África Subsaariana, no Sudeste Asiático e na Oceania, onde ocorreu 52% do desmatamento total registrado nessas regiões – uma área de 43 milhões de hectares, quase a mesma extensão do Marrocos. Nosso país, somente em 2019, foi a nação que mais desmatou em todo o mundo, de acordo com um estudo do MapBiomas. Para piorar, nada menos que 99% do desmatamento em nosso território é ilegal. Em 2019 foram 12 mil quilômetros quadrados de vegetação nativa destruídos. O dobro em relação ao Congo, que ocupou o segundo lugar no ranking de desmatamento no mundo.

Não por acaso, o Brasil também ocupa o 5º lugar no ranking mundial de Feminicídio – o homicídio cometido contra mulheres motivado por violência doméstica ou discriminação de gênero – segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas pra os Direitos Humanos (ACNUDH). O país só perde para El Salvador, Colômbia, Guatemala e Rússia em número de casos de assassinato de mulheres. Em comparação com países desenvolvidos, por aqui se mata 48 vezes mais mulheres que no Reino Unido, 24 vezes mais que na Dinamarca e 16 vezes mais que no Japão ou na Escócia. Mais da metade dos assassinatos de mulheres acontece dentro de suas próprias casas. Segundo a organização internacional Human Rights Watch, a taxa de homicídios de mulheres no Brasil é maior do que em qualquer outro país que compõe Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OECD), na qual figuram 36 nações.

O assassinato da Deusa

Para recordar as razões que contribuíram para que a humanidade se distanciasse de sua relação próxima com o meio ambiente, é preciso lembrar que, um dia, o início da adoração de um Deus único, branco e masculino inaugurou o distanciamento do ser humano do culto à figura da Deusa. O fato contribuiu para o afastamento entre as pessoas e o meio ambiente, que passou a ser abusivamente explorado e degradado por não mais ser visto como parte de uma relação interdependente e conectada.

Por muito tempo na história da humanidade, a definição de “Deusa”, também conhecida como “Senhora dos Dez Mil Nomes”, foi adorada por povos antigos. Ainda que fosse evocada por diferentes nomes e em diversos lugares, a Deusa representava o princípio criador e a unidade essencial de toda a vida na Terra. Na Anatólia e na Creta minóica era chamada de Cibele; No Egito era Nut; na África seu nome era Nana Buluka e em Canaã̃ era conhecida como Astherah ou Ishtar, por exemplo. A noção de divindade, portanto, já foi feminina, plural e diretamente associada às forças da natureza que, por sua vez, era fortemente reverenciada e considerada conectada a todas as fases da vida humana.

O culto à Deusa, no entanto, foi destruído e substituído. Primeiro pelos deuses guerreiros e depois pelo monopólio da ideia de um Deus único. Neste momento, o conceito da ‘Grande Mãe’ foi substituído pelo de um Deus masculino. O culto à divindade (no feminino) acabou banido da psique humana pela predominância da ideia do Deus único com criaturas feitas à sua imagem e semelhança – os homens –, um padrão amplamente apregoado pelas religiões monoteístas. E por serem feitos à imagem deste Deus, esses mesmos homens seriam considerados mais aptos para governar mulheres, crianças e a própria natureza. 

Lynn Hunt, autora do livro “A reinvenção dos Direitos Humanos – uma história” lembra que, no século XVIII (e até o presente) não se imaginavam todas as pessoas como igualmente capazes de autonomia moral. Duas qualidades relacionadas, mas distintas eram consideradas pelos homens: a capacidade de raciocinar e a independência de decidir por si mesmo. Ambas tinham de existir para que um indivíduo fosse moralmente autônomo, lembra ela. Ocorre que entre os indivíduos considerados desprovidos dessas faculdades estavam as crianças, os insanos e as mulheres. Mesmo assim, se crianças e insanos ganhassem ou recuperassem essas duas capacidades poderiam se tornar autônomos e, como os escravos, os criados ou os sem propriedade, se tornariam livres. Já as mulheres não tinham opções. Ou eram dependentes dos pais ou maridos, ou consideradas incapazes de terem autonomia moral. Até o fim do século XIX, quando as mulheres, finalmente, conquistaram o poder do voto, os direitos femininos não haviam sido nem sequer discutidos na arena pública pelos homens. A violência contra a mulher, como se vê, é simbólica, histórica e está fortemente enraizada. Ainda serão necessários anos de lutas constantes para a reversão do cenário.

O fim do mundo matricêntrico

O processo de “assassinato da Deusa”, ocorrido em ritmo e intensidade diferentes para cada povo, teve início há cerca de cinco mil anos e moldou a forma de vivermos a realidade até hoje. A doutrina se fundamenta em três ideias centrais que orientam a relação humana com o mundo não humano: a primeira é a que nos autoriza a usar uma natureza criada exclusivamente para nos servir; a segunda, que nos permite exercer amplamente nosso controle absoluto sobre ela; e a terceira, que afirma a superioridade humana em relação ela. Todos esses argumentos são apresentados no artigo “Em nome da Mãe: o arquétipo da Deusa e sua manifestação nos dias atuais”, escrito pela antropóloga e professora adjunta do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Rosalira Oliveira. 

Rosalira recorda que a era da predominância feminina na religião está documentada como contínua durante cerca de vinte e cinco mil anos. E conta que exemplos relativos à fusão e a convivência (quase nunca pacífica) entre esses dois sistemas podem ser encontrados em quase todas as mitologias europeias. “Em geral tal conflito é descrito, simbolicamente, como uma guerra, na qual os deuses recém-chegados enfrentam e dominam os antigos deuses, condenando-os a regiões obscuras ou admitindo-os de forma subordinada no panteão principal. Uma outra forma de expressão desse conflito é o combate entre um campeão da ordem – um deus ou herói solar – contra um monstro, serpente ou dragão – uma criatura filha da Deusa-Terra, ou, às vezes, a própria Deusa – cuja derrota marca o fim do mundo matricêntrico e do domínio da Grande Mãe. São exemplos desse arquétipo: a luta de Apolo com a serpente Píton entre os gregos; de Javé contra o Leviatã̃ entre os hebreus; de Marduk contra Tiamat, entre os babilônios, entre outros”, diz a professora no artigo.

Fatos e reflexões como essas nos recordam de que o projeto de poder patriarcal que planejou e executou a dominação da mulher é o mesmo que, também historicamente, arquiteta e operacionaliza o plano de destruição da natureza. Em nome do domínio, do capital e de interesses de ordem nada coletivas, o patriarcado sufoca tudo o que é vivo. Faz isso sem lembrar que sem o feminino e os serviços ecossistêmicos concedidos pelo meio natural a vida, simplesmente, não existe. Os negócios não existem. O dinheiro também não.

Parte enorme da sociedade global ainda fecha os olhos para a produção de alimentos livres de venenos, para a conservação e a preservação de áreas naturais e dos ecossistemas singulares, para a adoção de energia baseada em técnicas de geração de baixo carbono, para a astrologia, a espiritualidade (e não a religião) ou para a cura que vem da Terra, por exemplo. Continua tentando silenciar e limitar a atuação de mulheres que promovem revolução e que resistem à dominação. Mas, como bem coloca Margareth Atwood no livro que virou série, “O conto de Aia”, “tudo o que é silenciado clamará para ser ouvido ainda que silenciosamente”. Alguém duvida?

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