ARTIGO | A crise do transporte público em Curitiba: greve é só a ponta do iceberg

Senge Paraná
23.MAR.2017

17495718_10155514695302971_2055289867_nPor Luiz Calhau* 

A greve dos trabalhadores do transporte coletivo durou uma semana e marcou um momento de crises anuais do transporte coletivo na capital paranaense. O trabalhadores e os empresários não chegaram em acordo na noite desta terça feira e portanto a greve continua. Apesar disso não devemos culpar a greve pela paralisação do serviço, pois ela é direito dos trabalhadores.

Rafael Greca, por sua vez, falta com seu dever de gestor municipal – explicar à população porque reajustou a tarifa de transporte antes da negociação das empresas com os trabalhadores do Sindimoc. Em que base de cálculo definiu a tarifa em R$4,25? Porque acabou com a tarifa domingueira? O prefeito, que deveria ser a voz da população, se omite e reduz a crise do transporte a uma disputa trabalhista entre empregados e empregadores, quando ele mesmo tem papel central no desenrolar da história.

A verdade é que a prefeitura não sabe quanto os empresários gastam e ganham no transporte coletivo da cidade. A URBS se apoia em uma planilha de custos blindada e que não reflete a realidade. O método utilizado para o cálculo da tarifa técnica é de meados dos anos 1980. As empresas, que deveriam prestar contas mensalmente, não o fazem. Tudo isso com o aval do Ministério Público e do Tribunal de Justiça.

Licitação de cartas marcadas

A crise infindável do transporte coletivo da capital tem algumas raízes que de tempo em tempo são desenterradas, apenas para serem enterradas novamente. O transporte coletivo em Curitiba é operado pelas mesmas famílias desde quando surgiram as primeiras canaletas de ônibus nos anos 1960. Desde 1962 a administração municipal vem concedendo o serviço de transporte público sem concorrência. Jaime Lerner, por exemplo, renovou a concessão da operação do transporte coletivo por 10 anos para estas famílias em 1981, no melhor estilo de seu pupilo Rafael Greca, sem justificativa. A coisa foi se arrastando desde então até 2010 quando finalmente foi aberta concorrência pública para a operação do sistema.

Com o edital publicado, várias foram as empresas externas que se interessaram pela operação do sistema, mas havia um porém. Algumas exigências só poderiam ser atendidas pelas empresas que já operavam o transporte da capital.

Imaginem que a licitação do transporte público se assemelha a uma prova, onde as empresas interessadas na operação do sistema devem pontuar de 0 a 100 e quem tirar a maior nota leva o serviço. Entre as exigências para operar o sistema, valendo 20 pontos estava a possibilidade de adiantar a operação em relação à data da publicação do contrato. Se a operação fosse adiantada em 90 dias, se ganhavam os 20 pontos, se fosse adiantada em 45 dias se ganhavam 10 pontos e se não fosse adiantada se pontuava 0. As empresas que não operavam o sistema já saíam em desvantagem, pois não conseguiriam logisticamente adiantar em 90 dias o serviço. Teriam as empresas que se instalar na cidade, adquirir e operar uma nova garagem e contratar todos os serviços relacionados à operação do sistema, o que não se faz do dia pra noite. E foi exatamente esta a reclamação protocolada pelas empresas externas que se interessavam pelo contrato. Pediram estas empresas, a impugnação deste item alegando favorecimento às empresas que já operavam o sistema. A URBS ficou do lado dos empresários curitibanos e redigiu justificativas frágeis e contraditórias às empresas externas, resultando em um esvaziamento da concorrência pública.

Joel Rocha/SMCS

                                                                  (Foto: Joel Rocha/SMCS)

Outra exigência muito questionada foi a necessidade de experiência na operação de desembarque em nível através de vias exclusivas para ônibus, o que no Brasil apenas as empresas que já operavam o sistema de Curitiba possuíam. O resultado de tudo isso? Apenas três consórcios participaram do certame, exatamente aqueles compostos pelas empresas que já operavam o sistema. E não houve nem concorrência, cada consórcio se encarregou de disputar um dos três lotes do sistema. Mudou-se tudo para não se mudar nada.

Após a farsa da concorrência pública do transporte coletivo de Curitiba foram muitas as movimentações para denunciar o que havia ocorrido. Em 2013, foi protocolado junto a uma Comissão Parlamentar de Inquérito um relatório assinado por 5 sindicatos (SENGE, APP, Sindiurbano, Andes e Bancários) relatando as irregularidades encontradas no processo licitatório de 2010.

Além disso, ainda foram levantadas diversas irregularidades na tarifa como a previsão do preço médio do combustível na composição da tarifa técnica. Isto significa que o empresário cobra do usuário o preço médio de combustível, mas compra no mercado pelo preço mínimo, lucrando em cima de um coeficiente que deveria expressar custo e não lucro. Tal relatório foi utilizado também em uma ação popular para questionar a validade do contrato da prefeitura com os empresários de ônibus, mas a justiça não só invalidou os argumentos técnicos colocados pelo relatório como condenou as pessoas que integravam a ação popular por litigância de má fé.

Diante este cenário, é difícil acreditar que as instituições trabalharão em benefício de quem acorda cedo todo dia para pegar o ônibus. O que já foi modelo para o mundo, hoje sofre com os interesses particulares. O contrato com as empresas acaba só em 2025 e desde 2010 a tarifa quase dobrou.

Enquanto não houver a divulgação do balanço real dos empresários e a auditoria cidadã das planilhas de custo da URBS, não se pode justificar de maneira alguma o aumento da tarifa. Muito menos dizer que é culpa dos salários dos trabalhadores do transporte. A falta de vontade política, empresarial e judicial para democratizar o transporte coletivo de Curitiba e dar explicações plausíveis é mais um indício da formação de uma máfia dos transportes na capital paranaense.

*Luiz Calhau é Engenheiro Civil, integrante do Senge-PR e mestrando em Planejamento Urbano pela UFPR

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